NÃO FICOU PEDRA SOBRE PEDRA...
Dentre as tantas partidas históricas do Ramalhão, a mais inesquecível para mim (talvez porque foi a maior “fria” em que entrei em mais de 30 anos de torcedor) foi a célebre “batalha das pedradas” de São José dos Campos, em 1979. Segue, portanto, meu relato dos fatos daquele terrível e ao mesmo tempo memorável domingo, 25 de novembro de 1979.
Vencidas 4 rodadas do quadrangular final da Intermediária 1979, o equilíbrio era total entre Santo André, Taubaté e São José, todos com 5 pontos (cada vitória valia 2 pontos), e apenas a Esportiva, com 1, estava fora da briga. O campeão subiria direto e o vice iria para o “rebolo” contra o Marília, penúltimo colocado da Divisão Especial. A 5ª rodada marcava São José x Santo André, no Martins Pereira, e Esportiva x Taubaté em Guaratinguetá. A rodada foi disputada em uma situação peculiar: por conta de uma briga entre Vicente Matheus e a FPF, o Corinthians recusou-se a enfrentar a Ponte Preta em rodada dupla no Morumbi, por isso não haveria jogos pela Divisão Especial e todas as atenções da mídia voltaram-se para a Intermediária. A partida em São José seria transmitida ao vivo para todo o Estado pelas TVs Cultura e Record.
O São José montara um time milionário para conquistar o acesso e corria o risco de ver seu investimento cair por terra, por isso a vitória nessa partida era fundamental. Armou-se um clima de guerra, pois o São José reclamava que fora prejudicado no jogo de ida em São Caetano (o Santo André não podia jogar no Bruno Daniel, como punição pelos tumultos ocorridos num jogo contra o Independente de Limeira, na fase anterior).
Os dirigentes do Santo André, componentes do “Conselho da Salvação”, organizaram a maior caravana já vista na cidade. Cerca de 50 ônibus saíram defronte do supermercado Jumbo Estação, outros partiram de vários bairros da cidade (Camilópolis, Vila Luzita, Vila Pires) e caravanas avulsas foram formadas em Ribeirão Pires, Cubatão e até na Praia Grande. No total, cerca de 2.000 torcedores ramalhinos tomaram a Via Dutra rumo ao Vale do Paraíba; guardadas as devidas proporções, lembrou a invasão corintiana de 1976.
Embarquei num ônibus da Ipojucatur por volta das 10 da manhã, já com o ingresso na mão, e após uma parada estratégica para almoço num restaurante à beira da estrada em Jacareí, chegamos ao Martins Pereira por volta das 13:00, faltando portanto 3 horas para o início do jogo. Torcedores locais já nos esperavam – e a recepção não foi, digamos, das mais amistosas. Entramos no estádio e fomos logo encaminhados para o setor que nos foi destinado: um cantinho da arquibancada no final da curva, atrás do gol de entrada, sem banheiros, sem água e quase nenhuma segurança além de umas precárias cordas e meia dúzia de policiais que de jeito nenhum conseguiriam conter aquela multidão se ela resolvesse partir para cima de nós.
Numa tentativa para aliviar a tensão pré-jogo, o “torcedor símbolo” do Santo André, Velho Borracha, entrou em campo de mãos dadas com uma torcedora local, cada qual com uma bandeira de seu time. Não adiantou: o pobre Borracha acabou agredido por torcedores locais “uniformizados” (que entraram e saíram tranquilamente do campo), que lhe tomaram a bandeira e rapidamente a reduziram a trapos, para delírio do público. O que bem demonstra o clima hostil que pressagiava maus fluidos para a partida.
Enfim começou o duelo. O time da casa saiu na frente, através de pênalti de Milton em Edinho cobrado pelo zagueiro Darci, ex-Corinthians, e o Ramalhão empatou ainda na primeira etapa, também num pênalti sofrido por Bona e convertido por Da Silva. O jogo foi para o intervalo logo após a anulação de um gol de mão de Tião Marino, o que enfureceu ainda mais a torcida. No segundo tempo a Águia do Vale lançou-se desesperadamente ao ataque, mas não conseguia furar a sólida defesa ramalhina. O saudoso Milton (até hoje tido como um dos maiores goleiros da história do Ramalhão) fez grande defesas e foi eleito pelo Diário do Grande ABC o melhor jogador em campo, com nota máxima.
O nervosismo da torcida local aumentava com a notícia da vitória parcial do Taubaté em Guará, e a lealdade começou a ser deixada de lado. Ficou famosa a cena em que Da Silva, ao ser retirado de maca do campo, foi jogado ao chão pelos maqueiros e atingido por rojões disparados pela torcida.
Enquanto Fescina trocava os dois laterais ramalhinos por outros descansados para fortalecer a marcação, o Bandoneón Filpo Nuñez apostava no ágil Baitaca. Mas o ex-aliancista pouco pôde fazer.
A partida terminou no 1x1 – ou melhor, não terminou: aos 42 minutos do segundo tempo os refletores do estádio se apagaram, porém o árbitro deu prosseguimento ao jogo, pois a iluminação natural ainda era suficiente. Em desespero, cartolas e políticos da cidade invadiram o campo, exigindo que o árbitro suspendesse a partida devido à “falta de luz”; a confusão se estabeleceu, com muitos torcedores também invadindo o campo, e o árbitro deu o jogo por encerrado por falta de condições. Foi o que bastou para que a tensão acumulada explodisse numa onda incontrolável de violência.
Enquanto os jogadores ramalhinos, sob uma chuva de agressões, corriam para o vestiário, os torcedores encurralados na arquibancada viraram alvos de pedras atiradas de dentro do campo (nunca saberemos de onde saiu tanta pedra). Reagimos com a mesma munição. Ainda bem que a pontaria deles não era das melhores; escapei ileso, mas um rapaz ao meu lado teve a testa rasgada por uma pedrada. Praticamente nenhum de nossos ônibus escapou de ter os vidros quebrados. Também o repórter da TV Record Flávio Prado foi ameaçado por cartolas e “seguranças” que tentavam cercear seu trabalho e registrou queixa na Delegacia.
A violência chegou até a Via Dutra, onde baderneiros se posicionaram à espera da saída dos torcedores ramalhinos e atiravam pedras nos veículos que passavam. Até um ônibus de romeiros que retornava de Aparecida foi atingido. O policiamento decidiu reter nossos ônibus até que a situação fosse controlada, o que demorou várias horas. Somente por volta das 10 da noite os atletas e torcedores andreenses, cansados e famintos, puderam iniciar a viagem de volta. Cheguei em casa já no início da madrugada de segunda-feira, exausto, morrendo de fome e desesperado por um banho. Até hoje não acredito que passei por tudo aquilo e consegui voltar inteiro. O que não faz o amor pelo Ramalhão...
Os tumultos fizeram a FPF transferir a última rodada para campo neutro. Enquanto o Ramalhão levava 15 mil torcedores ao Pacaembu e vencia a Esportiva por 1 x 0, o Taubaté ficava com o título ao derrotar o São José no Parque Antártica por 2 x 1. O Ramalhão foi para o rebolo contra o Marília, perdeu e permaneceu por mais dois anos na Intermediária.
Ficha técnica:
São José 1 x 1 Santo André – 25/11/1979
Fase final da Divisão Intermediária
Local: Estádio Martins Pereira (São José dos Campos)
Público: 18.704
Árbitro: Romualdo Arppi Filho.
Gols: Darci (25' do 1º – pênalti) e Da Silva (38' do 1º – pênalti).
São José: Mário, Fidélis, Darci, Válter Passarinho e Nelsinho; Ademir Melo, Tata e Niltinho; Edinho, Tião Marino e Nenê (Baitaca).
Treinador: Filpo Nuñez.
Santo André: Milton, Zé Carlos Santista (Geraldo), Tito, Alemão e Luiz Augusto (Robertão); Fernandinho, Arnaldo e Bona; Zezinho, Da Silva e Rubens.
Treinador: José Carlos Fescina.
