(Esta coluna é uma transcrição revista e atualizada de uma mensagem que postei na mail list Ramalhonautas, em Maio de 2004. Infelizmente, quase nada mudou desde então.)
Meu objetivo é provocar alguma polêmica (no bom sentido, não esses bate-bocas fingidos de quinta categoria que se vêem nos programas esportivos de TV no domingo à noite) para discutir um assunto sério: as torcidas organizadas e sua função.
Seguindo a velha filosofia romana de “pão e circo”, tão ao gosto dos governos ocidentais, o futebol, que nasceu como esporte de recreação e competição, acabou promovido a espetáculo para grandes platéias. O “foco” do futebol deixou de ser o praticante, o esportista, deslocando-se para o espectador. E assim tem sido por décadas, mas em épocas mais recentes um novo elemento passou a tomar forma nas arquibancadas ao redor do mundo, e no Brasil em especial: a violência.
São freqüentes as notícias de agressões e até mortes de torcedores em dias de grandes clássicos, muitas vezes ocorrendo a muitos quilômetros de distância do estádio e bem antes do horário da partida. Não há uma batida policial em ônibus de torcedores, em dia de “grandes jogos”, em que não sejam encontradas armas brancas improvisadas, porretes, bombas caseiras e até armas de fogo. Num clássico recente no Morumbi, um incêndio criminoso atingiu o estádio sãopaulino, em verdadeira tática de guerrilha (“terra arrasada”). Até o Carnaval, a maior festa popular do país, já traz preocupações com o possível confronto, no próximo ano, de duas torcidas que mantêm escolas de samba em São Paulo. E já chegamos ao cúmulo de duas torcidas organizadas do MESMO time se agredirem estupidamente na porta do estádio. Tais fatos mostram que o assunto já está fora de qualquer tipo de controle. Como disse uma autoridade policial paulista, é impossível sitiar a cidade toda a cada dia que uma partida aconteça. Seria mais fácil proibir o futebol.
As chamadas "torcidas organizadas" de hoje têm cada vez menos a ver com o futebol. Estive refletindo e comparando as torcidas atuais com aquelas de vinte e alguns anos atrás (de que fiz parte), e percebo que aquele ideal de ir ao estádio, apoiar o time, juntar grana e formar caravanas para incentivar os jogadores nas partidas fora de casa, enfim o que deveria ser o objetivo de qualquer organização entre torcedores, perdeu-se no tempo.
Hoje penso que só restaram dois tipos de grupos organizados de "adeptos" de times de futebol. Um deles, e o da pior espécie, são as gangues de marginais inspirados nos "hooligans" ingleses. Estes pouco estão ligando para o esforço dos atletas em campo, pois não vão ao estádio para ver futebol (muitos nem gostam do esporte), mas para dar vazão a seus instintos assassinos. Para eles, os torcedores do outro time não são adversários, mas inimigos, que devem ser trucidados. E na verdade nem fazem questão de ir ao estádio: atacam em grupos onde quer que estejam, sempre que identificam uma "vítima", ou seja, um torcedor adversário, ou alguém que por qualquer razão reconheçam como tal, e que esteja sozinho e indefeso, pois a covardia é a marca registrada desses marginais. Só atacam em bando: sozinhos, são verdadeiras donzelas. Este tipo de "agrupamento" predomina entre as equipes "grandes" e constitui uma grave questão de segurança pública.
Por exemplo, uma vez há muitos anos ouvi da boca de um corintiano que para ingressar na Gaviões o candidato deveria jurar ódio eterno ao Palmeiras e a tudo que o represente. Na época, não acreditei. Hoje, tenho minhas dúvidas.
O outro tipo de torcida organizada é mais semelhante ao "tradicional" e existe principalmente nas equipes pequenas e médias, como o Ramalhão. Seus membros em geral gostam de futebol e têm amor pelo time, incentivam os jogadores e comemoram os gois, quase sempre com alegria genuína. Mas diferem das torcidas "à moda antiga" por dependerem inteiramente do clube. Têm cota de ingressos gratuitos, do contrário dificilmente iriam ao estádio, e caravanas só se a diretoria do clube fornecer o transporte. Muitas vezes estão politicamente comprometidas com os administradores do clube. Essas características eliminam qualquer independência da torcida, que na verdade não passa de uma claque oficial, como a dos programas de auditório. Só falta mesmo passar o "diretor de palco" com aqueles cartazes: aplauso, vaia, etc. Quando vou ao “Brunera”, muitas vezes me vejo procurando o tal sujeito dos cartazes...
É evidente que uma torcida desse tipo jamais terá a liberdade de cobrar nada da direção do clube, nem mesmo de assumir uma postura crítica, pois bastará a retirada dos "benefícios" pela diretoria para extinguir a torcida imediatamente. E, infelizmente, já acontece de membros deste tipo de torcida começarem a demonstrar comportamento semelhante ao do primeiro tipo.
Hoje, essas duas classes de torcedores predominam nos estádios. O espectador “comum”, aquele que vai ao futebol com a família apenas porque gosta do time e para se divertir, é cada vez mais raro; é preferível ficar em casa e assistir TV a suportar os desconfortos e correr os riscos inerentes a uma ida ao estádio.
Pode ser que essa “independência” seja uma utopia e que as torcidas bancadas pelo clube sejam um mal necessário. Afinal, no calendário do futebol brasileiro não há bolso que agüente tantas partidas por ano, e isso se o torcedor não estiver desempregado. Mas, nos meus tempos de “torcedor organizado”, não existia essa “cultura” de que o clube tem “obrigação” de sustentar as torcidas para ter algum público em seus jogos; pelo contrário, a idéia era que o torcedor, pagando seu ingresso, ajudava a sustentar a equipe, idéia que hoje, pelos altos custos do “produto” futebol, parece sem sentido. Mas, “organizado” ou não, nunca fui ao estádio sem pagar o meu ingresso, mesmo que isso não me permitisse (e ainda não permite) ir aos jogos do Ramalhão com a freqüência que gostaria.
E quais seriam as saídas? Para o primeiro tipo de torcida, o rigoroso controle dos integrantes, punição severa para os infratores e, em último caso, a extinção dos grupos. Na Inglaterra, assim foi feito e funcionou. Já para o segundo grupo, talvez buscar parcerias e patrocínios – isso se a torcida não quiser, por acomodação ou comprometimento, permanecer na situação atual.
Mas dizem que não há mal que sempre dure. Os Ramalhonautas representam uma nova proposta, algo diferente do que as “torcidas uniformizadas” defendem. Como prega o nosso Manifesto, estamos comprometidos com o ideal de trazer de volta aos estádios o torcedor “comum” e tornar novamente as arquibancadas um lugar seguro para o lazer das famílias. Quanto mais pessoas abraçarem essa causa, mais fácil será mudar a cabeça daqueles que ainda vêem o futebol como um pretexto para guerra, em lugar do que ele realmente é: um espetáculo, diversão, lazer – e nada mais.
Mas, até que isso aconteça, teremos que conviver com as torcidas organizadas, esperando que as autoridades e o Ministério Público façam o que lhes cabe, e rezar para que novas tragédias não ocorram. E que o futebol seja grande o bastante para sobreviver a tudo isso.
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